Poems

i-juca piranha

piranha (etim. - peixe dentado) (s.) – PIRANHA,

o mesmo que pirãîa (v.) (Lisboa, Hist.
Anim. e Árv. Do Maranhão, fl. 173)
PIRANHA, tisoura; peixe de dentes muito
cortantes.
 
PIR-ANHA. Ictiologia: piranha, peixe da
família dos caracídeos, gênero Pygocentrus.
= pir-ãia. Substantivo (peixe-dentes afiados,
por analogia): + tesoura
 
 
lembro de uma professora minha
do francês a ticiana melo
uma professora muito querida
há muitos anos isso
quando a gente ta
 
va no estágio
eu e a mirna juliana
minha colega do estágio
ou era em outra disciplina
antes do estágio
quando a gente tava se preparando
pra começar a ensinar francês
como língua estrangeira
pra estar habilitado a ensinar francês
como língua estrangeira
– uma das vertentes da minha formação
em letras que felizmente já deixei de lado –
lembro de ela ter falado que
 
os métodos de ensino de língua
estrangeira
tinham uma certa historicidade
e o método audiolingual por exemplo
também conhecido como
audiovisual
que tinha começado a ser desenvolvido
antes da segunda guerra mundial
tinha sido desenvolvido como
uma tecnologia de guerra
 
ele também ficou conhecido como
army specialized training program
baseado em teorias behavioristas
e repetições elaboradas em laboratórios
lembro de ela também falar
 
da guerra do vietnã
e antes de ele ser usado na sala de aula
como uma ferramenta didática
pra melhorar ou potencializar
o processo de aprendizagem
de uma determinada língua estrangeira
ele tinha sido usado
 
– isso ela explicando –
pra treinar soldados americanos
pra que eles aprendessem
de forma mais eficiente e eficaz
o idioma daqueles
que eles iriam matar
 
esse ano – na verdade 2019
ano em que comecei a escrever
este texto – eu comecei a estudar
tupi com o método do navarro
método moderno de tupi antigo
junto com um grupo de estudos da ufc
tocado de modo autogestionado
pela professora suene honorato
e demais interessados
 
eu tô bastante atrasada
em relação ao grupo
parece que faz séculos
que eu tô sempre
na mesma lição quatro
porque claro
tem sido meio complicado
pra mim
conseguir conciliar
o aprendizado
de uma língua antiga
com as pendências
da minha vida atual
mas a vida é muito engraçada
e tudo acaba se misturando
sem nem a gente perceber
direito
 
desde que eu voltei a morar no brasil
eu tô morando numa rua que se chama
padre luís figueira
– agora eu já não tô mais lá
falta só encerrar o contrato
e entregar o apto
eu morei lá um pouco mais de um ano
e resolvi me mudar aqui pra aquiraz
durante a pandemia –
e o padre luiz figueira
eu fui pesquisar na época
como quem não quer nada
só por curiosidade mesmo
e eu descobri que ele
assim como o josé de anchieta
eles escreveram obras sobre o tupi
eles foram os primeiros a escrever
artes grammaticas da língua do brasil
 
eu fui procurar essas obras
os pdfs dessas obras na internet
eu encontrei e baixei
edições fac-símiles dessas obras
e eu comecei a ler os pdfs:
arte de grammatica da lingoa mais
usada na costa do brasil de 1595
feyta pelo padre joseph de anchieta
da companhia de jesu
e a arte da grammatica da lingoa
do brasil, de 1815, composta pelo
p. luiz figueira
 
como eu tava estudando tupi
me interessava entender sobretudo
como essa língua foi sistematizada por eles
naquele período da colonização
 
no começo é um pouco difícil de ler
porque o português é antigo
com aquela graphya de 1500 e bolinha
que também mistura muitas
expressões em latim
e a gente demora um pouco
pra se acostumar com o stylo porque claro
hoje a gente tá muito mais acostumado
com métodos mais comunicativos
e dinâmicos de aprendizado de línguas
só que quando a gente começa a ler
esses livros
encontramos outras cousas
outras causas causalidades
 
nesses livros
a gente não encontra diálogos
como este hipotético
que talvez pudesse estar
em algum livro de ospb
em comemoração ao dia do índio
 
A: Olá! Tudo bem?
Meu nome é Tupi.
Como você se chama?
B: Guaraná!
Muito prazer, Tupi!
A: Muito prazer, Guaraná!
B: Vamos brincar de anta e capivara?
A: Ótima ideia! Vamos!
Vou preparar meu arco e flecha.
Quem acertar primeiro, ganha.
B: Combinado!
 
tanto na arte grammatica do anchieta
quanto na do luiz figueira
eles apresentam uma visão geral da língua
de forma bastante descritiva
como se fosse um tratado linguístico
que trata das letras dos nomes dos pronomes
das regras de pronunciação e de acentuação
 
e na primeira vez em que ambos vão apresentar
os verbos em tupi
na primeira vez em que vão nos apresentar
como são conjugados os verbos
os verbos de primeira conjugação em tupi
eles não usam verbos
como os do exemplo hipotético supra-
-citado
verbos que esperamos aprender
numa primeira lição de um curso
de qualquer língua estrangeira hoje em dia
eles usam o verbo matar // jucâ / jucà
e eles conjugam o verbo matar // jucâ / jucà
em todos os modos tempos e pessoas
correspondentes ao português daquela época
com a respectiva tradução em tupi
 
essa escolha pelo verbo matar // jucâ / jucà
repetida nas duas artes grammaticas
e nas suas demais reedições
não me parece ser portanto uma escolha inocente
um equívoco incoerente
ou um simples acidente de percurso
de quem está escrevendo um livro e distraidamente
por um lapso de segundo
se esquiva de explicar algo
ao contrário essa escolha de ambos
pelo verbo matar // jucâ / jucà
parece querer ilustrar
o que realmente é demonstrado
logo de cara nas duas artes grammaticas
 
ao escreverem essas artes grammaticas
que decerto serviram
pra ensinar outras pessoas a aprenderem tupi
portugueses no caso
porque se imaginarmos que os indígenas
já sabiam falar tupi
eles não precisavam consultar
esses manuais
pra aprenderem a falar
a sua própria língua
a escolha pelo verbo matar // jucâ / jucà
parece realmente reiterar
o que foi demonstrado
pela história inegável dos fatos:
um amplo programa de extermínio
genocida desde a era colonial
 
assim a um só tempo
essas artes grammaticas operam
em duas frentes
1) tanto funcionam como apostilas
manuais de guerra
pra ensinar a matar o outro
na língua do outro
a-jucâ / a-jucà: eu mato, matava, matei,
matara, ou tinha morto (tinha matado)
de onde é mister perceber que y-jucà-piráma
significa: para se matar; coiza que hade ser
morta; digna de ser morta
2) quanto funcionam como testamento
onde escutamos um mea-culpa confesso
a-jucâ / a-jucà: eu mato, matava, matei,
matara, ou tinha morto (tinha matado)
onde também se escuta o próprio gonçalves
dias matar y-jucà-piráma
 
em ambos os casos esses dois documentos
invariavelmente históricos
são testemunhas oculares
da matança
aîuká-matutenhẽ
aporoîuká
îukába
 
depois da leitura dessas artes
grammaticas eu só sei que o jucá
a árvore jucá caesalpinia ferrea libidibia ferrea
caesalpinia leiostachya
pau-ferro etc. nativa da mata atlântica
brasileira madeira de lei duríssima
matéria-prima das clavas tacapes
dos porretes ibirapemas iverapemes
dos indígenas
essa árvore também conhecida como
ébano brasileiro
nunca mais foi a mesma
pelo menos pra mim